sexta-feira, maio 31, 2013

"Vem cá, cheiroso..."

Balançando-se na cadeira de embalo, o velho fechava os olhos e passava a mão por sobre a barba. A cabeleira alva como as nuvens parecia um conjunto de pequenos espetinhos brancos que não chegam até a fronte. As sobrancelhas cinzas e a barba mal feita deixavam-no um vovô simpático e noel. Os olhos, que na juventude eram castanhos, ganhavam tons azuis de idade avançada.

Ainda que enrugada, a pele cheia de sardas de todos os tamanhos e cores era oleosa e viva. Os pés e as grandes unhas se apoiavam no chão, num movimento leve de empurrar o balanço de madeira para trás. No balançar do tempo, ficava tardes inteiras sentado sozinho na sala de casa, observando o movimento da família. Ia pra frente, pra trás, pra frente, pra trás. Os olhos fechados e a expressão sonhadora, como se não estivesse ali, sozinho na sala.

Pelo basculante da cozinha costumava entrar uma luz que chegava até ele. As cores de início de tarde batiam naquele rosto tranquilo e silencioso, iluminando-o. "Vem cá, cheiroso...", costumava dizer ao neto apressado que passava pela sala a caminho da rua. Ainda de olhos fechados, ele sorria. Queria um abraço, um cheiro, qualquer carinho. Na pressa, nem sempre o neto respondia.

"Peraí, vô! Eu já venho", "Agora não, papai!", "O que o senhor quer??". As negações partiam de todos na casa e a sala continuava vazia, com o velhinho na cadeira. De noite, quando alguns sentavam ao lado do balanço para assistir TV, o velhinho não estava mais lá. Era hora de dormir.

Trafegando pelos vazios espaços da casa, o velho tinha a própria companhia. O sorriso e os olhos fechados escondiam a solidão a que não queria se entregar. Balançava a cadeira à espera de uma aparição. Calado, era um velho de poucas palavras, não dividia a dor da solidão.

Nos momentos em que conseguia alguma atenção, tinha algum dos filhos para uma conversa e boas risadas. As melhores histórias, míticas, tenebrosas e provincianas guardava mesmo para o neto. Quando respondia ao chamado, o garoto ia lá abraçar o velho, esfregar o rosto na barba cheia: "E aí, vô?". Na oportunidade, o velho pedia ao neto que lesse algum texto nas revistas que não mais enxergava. "Meu filho...". Passavam boas tardes assim, com aquela luz do basculante a iluminar as conversas vagarosas e papos rápidos que cabiam ao adolescente desatencioso.

Durante a última conversa que tiveram, o avô estava na cama. E não levantaria mais. O garoto tentou lembrá-lo de algumas das histórias do interior do Maranhão: o lobisomem, a cobra do quintal, a grande fazenda da bisavó. O avô respondia com dificuldade. O Alzheimer esgotara as histórias e lembranças, mas não o sorriso. Sentado no chão, contemplava aquelas palavras finais e sorridentes do avô carinhoso, a se despedir.

Vô, como eu sinto saudade daquelas tardes, dos seus sorrisos e brincadeiras. Foi o senhor que me ensinou a jogar dominó, a amolar facas no quintal, a  ter paciência e ouvir boas histórias. Minha gratidão é pra sempre, é o tesouro que levarei aos meus filhos.

30 de setembro de 1911

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