domingo, junho 16, 2013

Bomba

A multidão se dividiu outra vez. Parte dela ficou para trás, ainda gritava: "Volta, volta, voltaaaaa!". Não demorou muito, ia dar certo. Eles voltavam e estávamos todos sorrindo, até soar a primeira bomba. Voltaram correndo, perseguidos. Policiais armados até os dentes abriam caminho à força. As bombas, lançadas uma a uma, distribuíam os sons explosivos sobre gritos de desespero.

Pareciam fugitivos de guerra, vinham na minha direção. A fumaça do gás se espalhava rapidamente, como prêmio pela coleção de bombas desveladas. Uma delas caiu ao meu lado. Sem reação, esperei. Imaginava que nada fosse acontecer. Cogitei. E se a polícia desistir, ainda dá tempo? Enquanto isso, alguns chinelos eram lançados na direção dos policiais. Eles responderam com mais gás lacrimogêneo.

Então a minha bomba explodiu. Naquele momento tomei um susto com o estouro para em seguida o impacto me consumir. De perfil, senti meu corpo estremecer em toda a extremidade direita.  O que se seguiu foi uma dor inextinguível. Começando pelas pernas, se distribuiu na lateral do abdômen feito agulha encravada na carne. A dor fina saia em forma de pontadas pela barriga curvada, próxima ao chão.

Quase fiquei de joelhos. Era insuportável. Mas o gás já saíra da bomba e dominava meu ar. Tossi. E não pensei duas vezes: corri. Corri com a multidão desembestada pelo medo. Éramos todos fugitivos da violência gratuita. No corre-corre não vi ninguém, enxergava apenas minha dor. Silenciosa e cintilante, ela minava as forças na marcha atlética dos fugitivos. Não tinha cabeça para mais nada. Desisti. Sentei na calçada.

Ao longe policiais avançavam. Bombas, gás... agora tiros. Jovens corriam, alguns assustados torcedores japoneses guiados por brasileiros no caminho. Uma mulher chorava e tremia nos braços dos parentes. Parecia à beira de um ataque nervoso e ameaçava desmaiar ali mesmo, no trajeto da violência. Eu estava em pé mais uma vez, segurando uma barriga que não era a minha barriga.

Que porra era aquela, cara? Sentia como se tivesse levado dezenas de joelhadas nos colhões, socos na barriga. A dor me fez mancar. E naqueles minutos seguintes eu tinha de correr, porque as bombas se aproximavam. Não olhei para trás. Aos poucos, os sons se transformaram em ruídos. Era possível ouvir as bombas explodindo, os tiros, mas longe. Sentei mais uma vez e, como se antes fosse pouco, pude deliciar as agulhadas intensamente.

A dor solitária foi interrompida num estalo. Cadê meus amigos? Sem rumo, dividiram-se todos. O medo de alguém ter sido apanhado me fez indiferente a dor, ao menos por enquanto. Peguei o celular e liguei. Liguei, mandei mensagens. Alguns estavam bem, outros não respondiam. Voltei a caminhar alguns metros e encontrei alguém. Andamos até um lugar seguro e lá dividimos as histórias. Parecíamos fugitivos, ofegantes e aliviados.

Por um instante me senti como parte dos velhos jogos de polícia e ladrão, que costumávamos brincar ao fim de tarde na vizinhança. Os que formavam o grupo dos ladrões se escondiam e eram perseguidos pelos que decidiram ser policiais. Eram alguns minutos gostosos da infância em forma de corrida pelo quarteirão. Compenetrado, relatei a fuga com o mesmo prazer, como se tivesse saído ileso na brincadeira do pique-esconde.

Logo percebi que a euforia passara. Estava lá eu de novo, perplexo, calado e com medo. Meus amigos ainda não tinham aparecido. A dor na barriga avisara retorno, irradiada para todos os lados. Não podia ser brincadeira, era real! Não, era S-U-R-R-E-A-L.

Sentado, deixei que os ouvidos contemplassem os barulhos ainda audíveis da multidão. À espera de uma resposta, não tive sequer. Sobrou-me o vestígio fresco da violência. Jazia mudo na minha barriga.

2 comentários:

  1. Nossa!
    Me emocionei com as palavras. Ver o manifesto que eu mesma participei pelas palavras de outra pessoa me trás de volta toda aquela sensação. O fôlego que me fugia dos pulmões, o medo, os barulhos das bombas no pé do ouvido, a revolta, a certeza...
    É horrivel ver que quem deveria nos proteger, está na verdade, contra nós. A luta continua!

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  2. É isso aí. Essa e muitas outras histórias estão contidas nos fragmentos humanos que tu reuniste nas fotos da manifestação. E isso tbm me emocionou muito. Em momentos ímpares, vidas estão ali. Vamos continuar na luta! Abraço grandão, Camilla.

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